A Copa América e os problemas que não surpreendem
Alta renda, baixo público, zero explicação: indícios eram claros e as consequências assustam.

A organização anuncia ingressos esgotados e o estádio não enche. A renda é a maior da história do futebol no Brasil, mas o ingresso médio não bate com os valores oferecidos ao público. A Copa América de 2019 e sua crise de público vai muito além da elitização das arquibancadas e do baixo interesse. A partida de abertura, entre Brasil e Bolívia, no Morumbi, arrecadou quase 22,5 milhões de reais com pouco mais de 46 mil pagantes, para um tíquete médio de quase 500 reais. No entanto, o ingresso mais caro, supostamente, custava 590, enquanto o mais barato saía por 190 – ambos na versão com preço cheio, já que ainda há meia-entrada. O cálculo não faz sentido e a explicação da Conmebol e do Comitê Organizador Local (COL) foi confusa. Da mesma forma, o pronunciamento não foi suficiente para aliviar o anúncio de venda total e o contraste com uma ocupação abaixo dos 70% no estádio do São Paulo, no melhor público do torneio até aqui.
Menos de 20% de lotação teve a Arena do Grêmio para Venezuela vs Peru, mesmo após parceria com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, que doou quase 2 mil ingressos para crianças de escolas públicas e projetos sociais; fazendo o mesmo para Uruguai vs Japão, nesta quinta (20). Em dois dos jogos menos badalados no Maracanã, o COL também fechou com a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro para o sorteio de 8 mil ingressos. E se a venda já foi baixa, a dificuldade para retirar os tíquetes ainda afastou mais torcedores. Para o empate por 1 a 1 entre Argentina e Paraguai, no Mineirão, foi impossível efetuar 8 mil retiradas às vésperas do jogo, e muita gente ficou de fora. Há apenas um centro de emissão de ingressos em todas as cidades, incluindo enormes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro. Estrutura ruim, horas de espera, desorganização, fila enorme, alta burocracia... O preço já assusta, o planejamento claramente insuficiente apenas piora.

Os indícios sempre estiveram à mostra. É claro que os holofotes acabam indo para incongruências mais recentes – no segundo jogo do Brasil, contra a Venezuela, ocorreu o mesmo da estreia: foi anunciado esgotamento de ingressos e quase 10 mil lugares ficaram vagos na Fonte Nova. Porém, já ficou claro que é difícil confiar no que o COL divulga. Antes do início da competição, fora dito que 65% das entradas estava comercializada. Tal informação só será passível de verificação após o fim da Copa América, mas de imediato parece improvável que se confirme. E já parecia antes da abertura do torneio: Equador vs Japão tinha vendido menos de 2 mil tíquetes; Bolívia vs Venezuela, menos de 4 mil. Públicos aquém para qualquer campeonato estadual, vergonhosos para uma Copa América. A renda, é claro, agrada muito. A média até agora passa dos 5 milhões de reais por jogo. Estádios vazios com alta arrecadação são resultados óbvios de ingressos caros.
A organização tenta resolver o problema agora, com o torneio em andamento, mas é difícil. Não há possibilidade de promoções, para não caracterizar "punição" aos torcedores que pagaram o absurdo valor original. O erro de planejamento sempre esteve claro, inclusive na forma de venda. O limite de reserva para patrocinadores e parceiros praticamente não existe, o que trava grande quantidade de entradas que podem ou não ter destino. O dinheiro, é claro, cai na conta do COL e da Conmebol, então a preocupação diminui. Para o jogo de abertura houve ingressos VIP, que não foram abertos ao torcedor "comum", custando mais de 2 mil reais. Há uma versão do mesmo tíquete que oferece o direito de entrada da criança ao lado dos jogadores, por módicos 10 mil. Fica mais eloquente quando colocado em perspectiva: na última Eurocopa, em país rico e de alto poder aquisitivo como a França, havia faixa de ingressos mais barata que no Brasil.
O salário mínimo francês beira os 7 mil reais, enquanto o brasileiro não chega aos mil. Até mesmo para as oitavas de final da Euro 2016 foram disponibilizados tíquetes por cerca de 110 reais. Nesta Copa América, apenas os setores sem assentos dos estádios de Grêmio e Corinthians têm entradas por menos de 120 reais.
Isso tudo para nem entrar nas acusações de corrupção, que já surgem aqui e ali. Na própria parceria com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, funcionários e assessores da Secretaria de Educação foram acusados pelo COL de utilizar, com aval da subsecretaria e da superintendência, ingressos que eram destinados a alunos e professores de escolas públicas. A Conmebol usa o COL de escudo, mas também tem sua parcela de responsabilidade, além de arrecadar dinheiro de forma desproporcional durante a Copa América. Na famigerada partida dos 22 milhões, por exemplo, o aluguel do Morumbi custou 350 mil, valor muito abaixo do que o São Paulo costuma cobrar. A mão da entidade máxima do futebol sul-americano está em todo o lugar, é pesada e pouco contestada. A dificuldade em explicar incongruências e a perda de credibilidade dos anúncios públicos só deixam mais claro o planejamento ruim – e abrem brechas para acusações muito piores.
Por baixo, o que está completamente visível é a incompetência. Pode haver problemas ainda mais profundos, e não seria nenhuma surpresa, mas já é inaceitável a total incapacidade de entregar um planejamento e uma execução satisfatórios para a Copa América, desde a definição dos preços, que até a própria organização já admite que foi desconectada da realidade, até a estrutura para atender os torcedores na retirada dos ingressos e nos estádios, passando pela venda em si – o site é bem ruim e exige alta paciência. Para piorar, os problemas que foram criados pelo COL e pela Conmebol são de difícil resolução por conta de limitações da própria organização do campeonato. A comunicação não é das melhores também: foram mais de 72 horas para explicar (pero no mucho) a matemática insana que envolveu o jogo de abertura. Enquanto isso, dentro de campo, o torneio segue tendo partidas em clima de amistoso. Ruim para todos, menos para a conta bancária da Conmebol.
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