Frases e efeitos
Crítica de Juninho à imprensa é míope, mas evoca traduções da alma do futebol, além da bola.

O ex-jogador e comentarista esportivo Juninho Pernambucano jogou lenha na fogueira de egos sem controle do jornalismo esportivo brasileiro com uma afirmação ao site do jornal El País: "Sabe qual é a diferença do atleta para o jornalista? É que nós aprendemos desde criança que existe alguém melhor que a gente". A bomba tem como alvo os repórteres setoristas de clubes do Rio de Janeiro, com quem Juninho comprou briga ao revelar condutas nada éticas, muitas vezes até criminosas, no relacionamento deles com dirigentes dos clubes. O choque de frente custou ao ex-atleta o conforto e o status de trabalhar na Globo, e abriu a porta para um debate necessário sobre quem é quem na condução do noticiário esportivo do país, sobretudo quando se trata de futebol. Cuidado. Os microfones estão abertos.
Juninho ganhou ponto precioso pela exposição de uma das mazelas da profissão – a vaidade, esse pecado preferido dos demônios do cinema –, ainda prestigiada pelo que o futebol representa para o mundo nos dias de hoje: uma máquina de fazer dinheiro mais eficiente – e na aparência, só na aparência, menos marginal – do que aquela montada no assalto da série "La Casa de Papel". No entanto, há controvérsias. Se acertou um jabe na imprensa corrupta, o ex-jogador vascaíno deixou o flanco livre para os cruzados da volta porque ignorou as redes mafiosas que controlam o futebol, e os esportes de um modo geral, com práticas inescrupulosas e traiçoeiras de cartolas, técnicos e, isso também, de atletas coniventes com iniquidades tão comuns à condição humana. A lição ética de Juninho esbarra nos fatos. A frase é bonita. Mas a realidade é bem diferente.
Frase por frase, a crônica futebolística tem sido criativa e prolífica, para o bem e para o mal. Muito mais do que o Juninho Pernambucano global, mero intérprete do jogo pelo jogo, apegado a leituras táticas de pouco brilho.
O texto de excelência teve seus dias de glória. Antes da explosão digital, reinou no papel pelos dedos de Nelson Rodrigues, Sérgio Porto, João Saldanha, Armando Nogueira, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros que enxergaram o futebol em sua natureza transcendental, algo muito além das quatro linhas. Nelson, por exemplo, vaticinou: "Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola".
Tem já algum tempo o interesse de escritores e jornalistas pelo futebol. Em 1921, mergulhado nas vidas secas do sertão nordestino, Graciliano Ramos decidiu meter o bedelho no esporte ainda desconhecido da maioria dos brasileiros e soltou aquela que teria sido a mais extraordinária gafe do baú de vidências e previsões desafortunadas que acompanham a história da humanidade: "Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra. Vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha que não durará um mês", escreveu o velho Graça na crônica "Traços a esmo", publicada no jornal alagoano O Índio, sob o pseudônimo J. Calisto.
Com todo o aporte intelectual que lhe cabe, pisou na bola o mestre, pensam os incautos que não conseguiram abstrair as intenções irônicas e debochadas do cronista. Graciliano desabonou o turfe, o boxe e o futebol para destacar a rasteira – "este, sim, o esporte nacional por excelência". A crônica vai fundo: "Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa. Cultivem a rasteira, amigos! E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina". Ficou só um pedaço do texto para a posteridade. Que pena.

Cronista esportivo e maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues sempre entendeu o futebol pelas linhas sinuosas do viés imaginário. "A verdade está com a imaginação dos locutores de rádio e não com o videoteipe – a imaginação está muito mais próxima das essências", sentenciou o anjo pornográfico. A voz de Nelson tem muitos tons: às vezes ácido, às vezes cínico, filosófico, único: "Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos"; "Para o jogador de caráter, uma vaia é um incentivo fabuloso, um afrodisíaco infalível"; "Só o juiz de futebol lava as mãos diante do irresponsável furor coletivo". Sobre Nelson, o jornalista Geneton Moraes Neto sintetizou: "Se houvesse justiça nesta República, uma lei deveria determinar que, depois de Nelson Rodrigues, ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano".
João Saldanha, jornalista, comunista, técnico, ele próprio autor de máximas inesquecíveis, se confundiu com o folclórico Neném Prancha, roupeiro-massagista do Botafogo nos anos 1960/70 e autor de frases sempre repetidas por qualquer garoto que tenha intimidade com a bola. Muitas das tiradas de Neném teriam saído da verve de Saldanha: "Se macumba resolvesse, o campeonato baiano terminava sempre empatado"; "Quem pede tem preferência, quem se desloca recebe"; "Quem não faz, leva".
O cronista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, autor do célebre Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País), também se aventurou na produção de boas frases – sempre inteligentes e bem-humoradas – sobre o futebol: "Quem diz que futebol não tem lógica ou não entende de futebol ou não sabe o que é lógica"; "No futebol, a cabeça é o terceiro pé".
O toque poético coube aos poetas. Armando Nogueira, jornalista, pela crônica, imortalizou personagens e construiu o que a academia, assaz vetusta em formulações teóricas, poderia bem chamar de estética do futebol: "A tabelinha é o triângulo amoroso do futebol"; "Para Mané Garrincha, o espaço de um pequeno guardanapo era um enorme latifúndio". Carlos Drummond de Andrade, o luminar da poética modernista brasileira, não ficou atrás: "Para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração".
Juninho Pernambucano cunhou uma frase provocadora, sim, e que deveria se estender para além dos gramados, porque ética, valores, princípios, cooperação, justiça, todo o subtexto da assertiva que ele pronunciou, são palavras que continuam fora do vocabulário de atletas, cartolas, jornalistas, e também longe dos ambientes sociais, das vizinhanças, longe de casa. É a vida.
Frase por frase, no calor da reflexão, vale a pena citar uma proferida por dono de boteco, em Belém, sem autor definido, que certamente complementa o rompante crítico de Juninho. Foi dita numa conversa entre pai e filho: "Quando decidi sair de casa para ganhar o mundo, meu pai me disse: 'Vai e procura o caminho da honestidade, porque lá a concorrência é menor'".
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