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Gol qualificado: ontem e hoje (e amanhã?)

Regra que nasceu há 53 anos marcou história no futebol, mas fica cada vez mais anacrônica.


O Cruzeiro encara o Flamengo e faz dois gols fundamentais fora de casa, no Maracanã. O mesmo Flamengo empata de forma heroica com o Grêmio em Porto Alegre, mas o gol não é qualificado. Nas últimas semanas, o torcedor brasileiro mergulhou de cabeça no fantástico mundo do mata-mata, com o início das fases agudas da Libertadores e da Copa do Brasil. Na primeira, o tento marcado fora dos próprios domínios segue valendo como critério de desempate. Na segunda, não mais.


Em tempos de VAR (o árbitro de vídeo), amplificou-se a eterna obsessão com a interpretação e a aplicação das regras do futebol, mas não com as regras em si. Por que uma norma existe, qual seu propósito, sua história e o problema que ela busca resolver? Por que e quando ela precisa ser modificada? Perguntas muito mais importantes do que qualquer resposta, uma vez que não há verdades absolutas. Mas o interesse pelas regras ajuda a nutrir um caminho mais justo e, principalmente, mais maduro para o esporte – em oposição, por exemplo, aos DVDs compilados por dirigentes com equívocos de arbitragem contra seus clubes. O debate ao redor dos erros de aplicação tende a ter cada um olhando para o próprio umbigo. Conceitualmente, entretanto, as normas não têm "lado". É neste estágio e sob esta perspectiva que o gol fora de casa precisa ser discutido, especialmente em um momento de mudança de paradigma sobre o critério.


Até 1980, segundo o jornal londrino The Times, mandantes de partidas em competições europeias – palcos que foram embriões da regra – faziam uma média de 1,06 gol a mais que os visitantes. Entre 1980 e 2000, a vantagem caiu para 0,77. Hoje, é ainda menor: 0,51.

Seria impossível e talvez até desonesto, no entanto, mergulhar no assunto sem deixar claro um posicionamento. Direto ao ponto, portanto... O gol fora de casa como critério de desempate em um confronto direto permite algo alienígena a um esporte em que se marca um "ponto" de cada vez, como é o caso do futebol: mesmo perdendo, um time precisa de apenas um gol para, na prática, virar o confronto. Virar, não empatar.


Não é um critério de desempate, afinal, vencido em circunstâncias mais amplas, como uma vantagem de empate ou de dois resultados invertidos por conta de melhor campanha, por exemplo. Este tipo de norma também tem problemas e merece um debate próprio, mas é fato que o beneficiado é estabelecido antes do confronto. Dentro do contexto isolado de uma disputa entre dois clubes, sem vantagens pré-conquistadas, não há sentido um placar que termina em 3 a 3 ter um vencedor. Isso vale para o mata-mata, mas, também, para competições de grupos ou pontos corridos que utilizam o confronto direto (com gol qualificado) como desempate, procedimento comum na Europa.


No Brasil, a regra importada se popularizou a partir da criação da Copa do Brasil, em 1989, com o Corinthians como protagonista. Na primeira fase, o Timão eliminou o Sampaio Corrêa nos gols fora de casa. Já nas quartas-de-final, foi eliminado pelo Flamengo no mesmo critério.

Thiago Neves Cruzeiro comemoração
Thiago Neves comemora seu gol na vitória sobre o Flamengo, semana passada, no Maracanã. Dois gols fora dão enorme vantagem para o Cruzeiro avançar na Libertadores. (Bruno Haddad/Cruzeiro EC)

Nem é necessário entrar no disparate que é o gol fora de casa, em certas disputas de mata-mata, valer também durante uma eventual prorrogação, dando um terço a mais de tempo para uma das equipes marcar o tal gol que vale mais. Até defensores da regra, em geral, entendem que esta é uma má aplicação. E é por isso que a discussão mais conceitual do critério precisa ocorrer, pois o esporte está infestado tanto por regras sensatas que são mal aplicadas – e, portanto, rapidamente condenadas por alguns – quanto por regras tolas que, com o tempo, se tornam naturais. Isso não significa, é claro, que não haja argumentos razoáveis em prol da regra.


Ela é usada no mata-mata europeu desde 1965, em uma tentativa de diminuir a necessidade de uma terceira partida em campo neutro – e implementada pouco depois das quartas-de-final da Copa dos Campeões, entre Liverpool e Colônia, ser decidida pelo cara ou coroa. Naquela época, jogar uma partida fora de casa era uma epopeia; vencê-la, uma glória. Hoje não é mais assim, e parte da proposta é ter menos disputas de pênalti. Na Copa da Liga Inglesa, por exemplo, este objetivo é levado a tal extremo que, nas semifinais, o gol fora de casa só vale na prorrogação do jogo de volta. Ou seja, as equipes chegam ao fim dos 180 minutos empatadas e, se uma delas marcou mais tentos fora de seus domínios, imediatamente entra nos 30 minutos finais com uma nova vantagem.


A analítica Football Whispers mostra que de agosto de 2013 a maio de 2016, em um período de três temporadas europeias, os times mandantes somados alcançaram uma média de 16 gols entre as oitavas e as semifinais da Liga dos Campeões. A média dos visitantes: 21 gols.

As partidas ficam, sim, mais abertas e emocionantes quando um gol pode inverter completamente o resultado. Os confrontos entre Chelsea e PSG pela Liga dos Campeões, nas temporadas 2013/14 e 2014/15, são bons exemplos. Em um deles, inclusive, o gol qualificado decisivo saiu justamente na prorrogação. Além disso, mesmo outras normas estabelecidas para desempates podem culminar, coincidentemente, em situações de um único gol significar uma virada na classificação. O efeito prático é importante, mas é o espírito da regra que separa o joio do trigo. O gol de ouro, por exemplo, também propunha diminuir as disputas de pênalti, mas ao custo de tentar transformar o futebol em um esporte de nocaute. Um golaço não vale por dois, mas os últimos cinquenta anos normalizaram a ideia de que um gol na casa do adversário pode valer.


O ex-técnico do Arsenal, Arsène Wenger, ficou marcado por reclamar do desempate por gols fora, sempre que o critério eliminava sua equipe. Aconteceu em 2013, contra o Bayern de Munique, e em 2015, contra o Monaco. Neste ponto, o fim da vida de uma regra se assemelha muito ao início da vida de outra, mesmo que elas tenham propostas completamente diferentes. O VAR, ainda longe de estar pronto, é um avanço na tentativa de melhorar o acerto na aplicação da regra e, inevitavelmente, passa pelo mesmo processo. E, pior ainda, por lidar com arbitragem, cai na mesma vala de todas as discussões sobre o tema: louvado por quem se beneficia e criticado por quem se sente prejudicado.


Segundo o também londrino The Guardian, em 1965 o time visitante vencia apenas 16% dos jogos por competições europeias. No mata-mata da Liga dos Campeões 2013/14, de acordo com levantamento da ESPN, os visitantes ganharam 32% das partidas. O dobro.

Sempre há e sempre haverá quem se sinta prejudicado por normas, mesmo que corretamente aplicadas, simplesmente porque as normas não são perfeitas. Precisam ser questionadas e discutidas – este é o ponto, aliás. Mas fazê-lo apenas após vê-la beneficiar o adversário não é questionar a regra: é lamentar que, desta vez, ela não pôde ser aplicada a seu favor.


Tudo isso posto, fica claro que a regra do gol fora de casa tem e teve um propósito. E parece, inclusive, ter sido bem-sucedida. Não é mais. O raciocínio original pouco se aplica atualmente. Se as distâncias físicas tinham um poder aniquilador no time visitante em 1965, hoje este poder é mais visível nas distâncias financeiras entre as equipes – para as quais há tentativas de novas regras no mundo inteiro, de teto salarial ao Fair Play Financeiro, nenhuma ainda bem-sucedida. Mesmo caso do VAR, ainda problemático, porém, tentando ajudar a solucionar um problema. Mudar só por mudar não leva a nada, mas o medo da mudança também não. Tanto a adição quanto a abolição de normas sempre fizeram parte do esporte e, se feitas com lucidez, o beneficiam. Não para o clube, federação ou instituição que esperneia mais alto, mas para todos. A vida útil do gol qualificado está chegando ao fim, e a CBF, quem diria, já percebeu. Parece questão de tempo até que CONMEBOL, UEFA e FIFA, entre outros, também percebam.

 

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