O conveniente fantasma da Super Liga europeia
Atrás de benefícios, gigantes ameaçam romper com a UEFA há mais de duas décadas.

Juventus, Manchester City, Real Madrid, Bayern de Munique, Barcelona, todos jogando entre si. Ocorre quase anualmente, nas fases decisivas da Liga dos Campeões. Até chegar lá, porém, eles enfrentam CSKA Moscou, Ludogorets, BATE Borisov, PAOK. É normal, faz parte do processo de afunilamento de qualquer competição eliminatória. Entretanto, no mínimo desde a década de 1990 há um interesse, por vezes velado, por vezes explícito, de fazer com que os confrontos dos gigantes (históricos e financeiros) sejam frequentes – ou mesmo durem uma temporada inteira. É o que ficou conhecido como Super Liga europeia. De 1998 para cá, a proposta apareceu, de formas diferentes, pelo menos uma vez a cada dez anos. Basicamente, o ciclo se apresenta assim: os planos secretos "vazam", todos negam, mas os usam na negociação com a UEFA por premiações maiores, a Liga dos Campeões é reformulada e o imbróglio todo é esquecido.
No fim de 2018, o assunto surgiu novamente, como parte do Football Leaks, um site que divulga documentos confidenciais (muitas vezes obtidos ilegalmente), desde 2015, sobre os bastidores do futebol. Segundo o vazamento, onze clubes discutem, em segredo, a criação da Super Liga, à revelia da UEFA e dos campeonatos nacionais. Seriam eles: Real Madrid, Barcelona, Arsenal, Manchester United, Manchester City, Liverpool, Chelsea, Juventus, Milan, Bayern de Munique e Paris Saint-Germain. A ideia, a princípio, seria romper com as estruturas atuais do futebol europeu e jogar entre si, com mais cinco convidados (Atlético de Madri, Borussia Dortmund, Inter de Milão, Olympique de Marselha e Roma), que disputariam o rebaixamento. Sim, haveria rebaixamento, mas só para os convidados; as equipes fundadoras teriam a garantia de não cair por 20 anos. Mas cair para onde? Em tese, de volta para as ligas nacionais – caso elas aceitassem.

Aí mora o principal contrassenso do plano: uma ruptura que, na verdade, precisaria ser alimentada pelo próprio sistema que busca romper. É possível até que, pelo ponto de vista do abismo financeiro, um Campeonato Espanhol sem Real Madrid e Barcelona, por exemplo, pudesse ser mais competitivo, embora menos atraente. Mas a desconexão da proposta com uma realidade minimamente plausível, pelo menos atualmente, parece dar fôlego à noção de que ela existe (se existe) apenas para ser uma carta na manga dos grandes clubes diante da UEFA, oferecendo um pequeno choque de realidade à organização – que não pode pensar em perder suas galinhas dos ovos de ouro. Sob ameaça de uma debandada dos gigantes, a entidade prioriza satisfazê-los. E aconteceu. Em fevereiro, o presidente Aleksander Čeferin foi reeleito, com promessas de proximidade entre a UEFA e a Associação de Clubes Europeus (ECA), comandada pelos grandes times.
O presidente da ECA é ninguém menos que Andrea Agnelli, o mandatário da Juventus, uma das proponentes mais ferrenhas ou da Super Liga, ou de melhorias no formato da Liga dos Campeões para os interesses dos clubes maiores – a Itália está ficando pequena demais para a alvinegra. Para Agnelli, a fase inicial poderia até se manter com 32 times, mas ao invés de oito chaves de quatro, seriam quatro chaves de oito. As equipes que participassem teriam, portanto, no mínimo 14 jogos, não mais apenas seis. Um aumento muito significativo, que tornaria necessário ajustar os torneios nacionais para acomodar os gigantes – ou, pelo menos, deixá-los jogar com as categorias de base. Para onde se olhe, a prioridade é clara: menos partidas domésticas, mais confrontos europeus. A gigante italiana (como alemães, espanhóis e franceses) também quer diminuir o abismo do dinheiro de televisão no Campeonato Inglês, ao aumentar o montante continental.
Um problema ainda mais profundo da Super Liga seria com a FIFA, caso o torneio passasse a existir sem sanção alguma. Jogadores que o disputassem não poderiam jogar em nenhuma competição da FIFA, incluindo a Copa do Mundo. E os clubes e federações que decidissem seguir sob a tutela da FIFA não poderiam enfrentar os participantes da Super Liga, nem mesmo em amistosos.
As últimas mudanças na Liga dos Campeões já vieram de uma queda de braço entre os interesses dos gigantes e os da UEFA. Em 2016, após rumores de que os maiores clubes ingleses articulavam a Super Liga, a organização decidiu aumentar o número de vagas diretas na fase de grupos para as equipes de Inglaterra, Espanha, Itália e Alemanha, que passaram a não disputar mais os playoffs. A própria expansão da competição para o formato que se conhece hoje (embora tenha passado por mudanças desde então, como o fim da segunda fase de grupos) veio em 1998, quando a UEFA aboliu a Copa dos Campeões de Copas e elevou de 24 para 32 o número de participantes na fase principal da Liga dos Campeões. Naquela oportunidade, a proposta era capitaneada por italianos, quando a Serie A estava em alta. O presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, é um dos principais defensores da Super Liga. E o interesse vai passando de mão em mão...
Quando sentem que precisam se fortalecer diante da UEFA, os grandes clubes europeus já sabem exatamente qual caminho seguir. E dá certo. Aleksander Čeferin recentemente garantiu que, durante seu segundo mandato à frente da entidade máxima do futebol europeu, trabalhará em parceria com a ECA para "delinear o futuro das competições de clubes". Ou seja, dará aos gigantes uma plataforma ainda maior para efetuarem mudanças que os acomodem, cada vez mais, em uma prateleira quase inalcançável. A eliminação precoce (e justa) do atual tricampeão europeu Real Madrid, nesta terça (5), da Liga dos Campeões, soa como argumento. Talvez o colega jornalista Eoin Connolly tenha definido da melhor forma a disputa: às vezes parece uma ameaça inócua em busca de afago, como uma criança de oito anos dizendo que vai fugir de casa, mas outras vezes parece assustadoramente plausível, como um adolescente de 18 anos dizendo que nunca vai morar sozinho.
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