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O futebol na cabeça

Literatura de Geovani Martins faz o esporte aparecer em meio às vozes juvenis da periferia.


"Amava e odiava aquele morro como ninguém nunca vai conseguir entender, nem explicar. Ia olhando pros becos e lembrando de umas paradas da antiga, momentos com os amigos de infância, as festas de aniversário, o dia de Cosme, sempre correndo pra cima e pra baixo, brincando de Bob Teco, matando ratos com a atiradeira. Lembrou dos sonhos que tinha quando era moleque, do que imaginava que seria sua vida, no começo nunca pensava em fechar na boca. Queria era ser jogador de futebol, piloto de avião, técnico em informática. Agora, enquanto desce a ladeira pra chegar na saída do morro, só consegue pensar que tudo vai ser muito diferente."

Geovani Martins abre caminho para um Rio de Janeiro vivido e narrado por jovens da periferia. Jovens marcados pela dureza e pelas ondas do cotidiano, mas também por questões existenciais, por medos e sonhos. Baseados, bocas, armas, pichos, praias. Está tudo ali em O Sol na Cabeça, livro de estreia de Martins. Também o futebol, de forma sutil, ronda o imaginário de seus personagens.


Nenhum dos treze contos do livro envolve diretamente o esporte. Mas, ao menos em sete deles, o futebol aparece como figurante, é parte da paisagem que povoa as mentes juvenis – e mesmo infantis. Em Travessia (citado acima), quando Beto é expulso do morro, a memória traz de volta o que ele viveu ali. Lembra, entre outras coisas, que queria ter sido jogador de futebol. Mas o vento soprou noutro rumo.


Das lembranças do passado para as projeções do futuro. Breno, de O Caso da Borboleta, sabe que menino não é lagarta pra virar borboleta, mas… "Sonho de Breno é voar, seja como piloto de avião ou jogador de futebol". Depois de Dadá Maravilha, quem há de dizer que boleiros não voam?


O adolescente André, de Primeiro Dia, com olhos atentos para sua nova escola, deixa a questão: "O que estaria fazendo quando completasse vinte anos de idade? Seria um empresário, jogador de futebol, paraquedista?". Para ser respeitado, não levou todo o material escolar comprado pela mãe (lápis de cor, régua, canetinhas…); foi para a aula com uma caneta Bic e o caderno do Flamengo.


O autor Geovani Martins, carioca da gema e morador do Vidigal. (Chico Cerchiaro/Companhia das Letras)

Em entrevista à revista Claudia, Geovani Martins, que este mês completa 28 anos, contou que o pai, hoje motorista de caminhão de gelo, tinha potencial pra fazer sucesso com a bola nos pés. "Quem o viu jogar futebol garante que ele podia ter sido um craque de grandes sacadas em campo. Acho que faltou disciplina. Foi um moço muito bonito, galãzinho… Também não contou com a sorte nem conhecia gente influente no meio."


Mais trágica é a história de Jean. Como o pai de Martins, ele era craque de bola. Mas o que interrompeu o caminho de glórias do jovem citado pelo narrador-personagem de Rolézim, conto que abre o livro, foi a morte, que veio numa operação policial.


"Sem neurose, gosto nem de lembrar, tu tá ligado, o menó era bom. Só queria saber de jogar o futebol dele, e jogava fácil! Até hoje vagabundo fala que era papo de virar profissional. Já tava na base do Madureira, logo iam acabar chamando ele pra um Flamengo, um Botafogo da vida. Pronto! Tava feito! Mó saudade daquele filho da puta, na moral. Até no enterro o viado tirou onda, tinha umas quatro namorada chorando junto com a mãe dele. Esses polícia é tudo covarde mermo, dando baque no feriado, com geral na rua, em tempo de acertar uma criança. Tem mais é que encher esses cu azul de bala. Papo reto."

Em Espiral, diante de um novelo de preconceito e perseguição, vem o afastamento do que de fato importava ao estudante que conta a história em primeira pessoa. Ele não conseguia se concentrar nos livros. Nem se importava com o futebol. "Não queria saber se chovia ou fazia sol, se no domingo daria Flamengo ou Fluminense, se Carlos terminou com Jaque, se o cinema estava em promoção."


Paulo, o garoto de Roleta-russa, pegou escondido a arma do pai para impressionar a galera. Queria que a admiração e a atenção daquele momento fossem duradouras. "É difícil não se destacar em nada entre os outros moleques. Paulo não era dos melhores no futebol, nem na gude, nem na pipa. Não era dos mais engraçados nem dos bons de briga." A habilidade esportiva, como distinção entre pares, para ele era falta – que ser o dono da arma preenchia.


O livro de contos, que fez sucesso em feiras internacionais e hoje roda o mundo em diversos idiomas. (Divulgação/Companhia das Letras)

O momento mais bonito do livro envolvendo futebol aparece no conto Sextou. Quem arrumou o primeiro trabalho do narrador-personagem foi Márcio, professor de tênis que morava em cima da casa dele. A missão era recolher as bolinhas nuns condomínios onde o professor dava aula. Na ida para o serviço, o assunto era sempre futebol. Até que um aluno tirou graça, veio uma resposta atravessada e foi-se o trabalho.


"O Márcio ficou bolado, disse que quase fodo com o trabalho dele. Minha mãe também ficou bolada, todo mundo ficou muito puto com essa história. Mas, para mim, a pior coisa foi o Márcio ter parado de falar comigo. Foi ele que me levou num estádio de futebol pela primeira vez, nunca vou me esquecer. Depois disso, durante um tempo, toda vez que o Flamengo metia uma bola na rede eu lembrava dele, tinha vontade de bater lá em cima, gritar junto, dar aquele abraço de gol."

O futebol, ali, é o elo de afeto entre os personagens. E o gatilho que lembra a vontade de estar junto com o amigo.


Com as imagens e o olhar, as vozes e o falar que alinhavam O Sol na Cabeça, a literatura de Geovani Martins desloca narrativas e narradores oficiais do Rio de Janeiro para fora do auto-atribuído lugar universal. Cada um fala do seu quadrado, mas qual quadrado vira o baile todo?; e quais quadrados não são ouvidos, não voam para além?


Ninguém nasce borboleta. Martins virou uma.

 

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