O manifesto antirracista de Roger Machado
Resposta de técnico do Bahia em coletiva vira um documento do futebol; leia a transcrição.

No país que virou "do futebol" graças à genialidade de grandes craques negros, como Leônidas, Pelé, Garrincha e Romário, conta-se nos dedos os treinadores negros que não têm a carreira interditada em grandes times. No último sábado, 12 de outubro, Roger Machado e Marco Aurélio de Oliveira, o Marcão, enfrentarem-se no Maracanã pela elite do Campeonato Brasileiro. Marcão como técnico do Fluminense; Roger comandando o Bahia.
Antes do jogo, pelo Twitter, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol desafiou os dois clubes: "Que tal no próximo jogo onde os dois únicos técnicos negros da Série A se encontram eles vestirem nossa camiseta?". Os tricolores do Rio de Janeiro e de Salvador toparam a ação e seus treinadores se cumprimentaram trajando a camisa do Observatório, que tinha grafada nas costas a hashtag #ChegadePreconceito.
Na entrevista coletiva pós-jogo, em meio às explicações sobre a derrota de seu time (o jogo terminou 2 a 0 para o Fluminense), Roger foi perguntado pela repórter Caroline Patatt, da Fox Sports, sobre a campanha contra o racismo. A resposta, que desde o fim de semana repercute nas redes sociais, é, além de uma aula sobre racismo estrutural, um manifesto antirracista. A seguir, estão transcritas as palavras do treinador:

Não deveria chamar atenção e ter uma repercussão grande dois treinadores negros estarem se enfrentando na área técnica depois de terem tido uma passagem como protagonistas dentro do campo. Mas, para mim, essa é a prova de que existe o preconceito. Porque é algo que chama atenção, na medida em que a gente tem mais de 50% da população negra e a proporcionalidade que se representa não é igual.
Eu acho que a gente tem que refletir e se questionar. Se não há preconceito no Brasil, por que os negros conseguem ter um nível de escolaridade menor que o dos brancos? Por que a população carcerária é 70% dela negra? Por que quem mais morre são os jovens negros no Brasil? Por que os menores salários entre brancos e negros são para os negros, entre as mulheres brancas e negras são para as negras? Por que, entre as mulheres, quem mais morre são as mulheres negras?
Há diversos tipos de preconceito. Nas conquistas pelas mulheres, por exemplo, hoje nós vemos mulheres no esporte, como você. Mas quantas mulheres negras têm comentando esporte? Então nós temos que nos perguntar. Se não há preconceito no Brasil, qual é a resposta que se tem relacionada a isso?
Para mim, nós vivemos um preconceito estrutural, institucionalizado. Quando eu respondo para as pessoas dizendo que eu não sofri preconceito diretamente, a ofensa, a injúria, ela é só o sintoma dessa grande causa social que nós temos. A responsabilidade é de todos nós, mas a culpa desse atraso, depois de 388 anos de escravidão, é do Estado. É através dele que políticas públicas, que nos últimos 15 anos foram institucionalizadas, resgataram a autoestima dessas populações que ao longo de muitos anos tiveram negadas assistências básicas. Elas estão sendo retiradas neste momento.
Na verdade, esses casos que estão havendo agora de aumento de feminicídio, homofobia, os casos diretos de preconceito racial, como eu disse, são sintomas. Porque a estrutura social ela é racista. Ela sempre foi racista. Nós temos um sistema de crenças e regras que é estabelecido pelo poder. E o poder é o poder do Estado, o poder é o poder das comunicações e é o poder da Igreja.
Quando esses poderes não enxergam ou não querem aceitar e assumir que o racismo existiu e que precisa haver uma correção nesse curso, muitas vezes dizem que nós estamos nos vitimando ou que há um racismo reverso. Mas, a bem da verdade, 10 milhões de indivíduos foram escravizados, mais de 25 gerações. Isso passou pelo Brasil Colônia, pelo Império e só se mascarou no Brasil República.
A gente precisa falar sobre isso. Nós precisamos sair da fase da negação. Nós negamos. "Não, eu não falo sobre isso". Porque não existe racismo no Brasil em cima do mito da democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo.
A minha posição que ocupo hoje como negro na elite do futebol brasileiro é para confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria racial. Eu sinto que há preconceito quando vou num restaurante e só tenho eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim. Mas, mesmo assim, rapidamente quando a gente fala disso, ainda tentam dizer: "Não há racismo, tá vendo?! Você tá aqui. Você é a prova". Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui.
O gaúcho Roger Machado tem 44 anos. Como jogador, atuava na lateral esquerda. Fez longa e vitoriosa carreira no Grêmio, outro tricolor, time onde começou e que defendeu por dez anos. Depois passou pelo futebol japonês e, na volta ao Brasil, por seu adversário do último sábado (12), o Fluminense. Há pouco mais de cinco anos, é técnico de futebol. Antes do Bahia, onde está desde abril, treinou clubes como Juventude, Grêmio, Atlético Mineiro e Palmeiras.
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