O promédio e o salto cruel do futebol argentino
Às vésperas do início, Superliga efetuou mudança que só amplia vantagem dos clubes maiores.

A ideia do promédio em torneios de futebol é quase alienígena na realidade brasileira. Por aqui, um ano ruim e um clube, independente de sua grandeza, se vê rebaixado para a divisão inferior. Bom, pelo menos em tempos recentes... A história do Campeonato Brasileiro é bem mais complexa. Em países como a vizinha Argentina, por exemplo, o descenso é definido a partir de um cálculo feito em cima das pontuações de diversas edições do campeonato: o tal do promédio. Criado ainda nos anos 1950, mas estabelecido de fato na década de 1980, a medida torna inquestionavelmente mais difícil a queda de clubes com alto poder de mídia e investimento. Isso não significa, é claro, que não ocorra. O atual campeão da América do Sul, o River Plate, caiu pela primeira vez na sua história em 2011, após três anos de fraquíssimo aproveitamento. Desde então, retornou e vive grande momento. Originalmente, porém, foi o primeiro beneficiário da regra.
Seria um exagero dizer que o promédio foi criado para salvar o River, já que ele entrou em vigor antes do início do campeonato de 1983, em que os Millonarios terminaram na lanterna e cairiam. Mas é verdade que a nova regra manteve o time na Elite, assim como no ano seguinte, em tese, o rival Boca Juniors teria passado o torneio inteiro lutando para não cair – não fosse a certeza de que era quase impossível, com o promédio. Além disso, o próprio resgate da medida veio após a queda do San Lorenzo, em 1981. A ligação entre o formato que decide o rebaixamento na Argentina e a proteção aos clubes "grandes" é umbilical. E agora que o questionamento só tem aumentado nos últimos anos, um problema ainda mais delicado surge: no fim de julho, a Superliga decidiu mudar as regras no meio do jogo. Apenas três caem, ao invés de quatro. Coincidentemente, Newell’s Old Boys e Rosario Central estão com promédios baixíssimos.

Ora, se a regra é calculada por três anos, qualquer mudança efetuada nela precisa ser gradualmente estruturada em um período de pelo menos dois, para que sejam descartados os anos anteriores. A brecha, por exemplo, poderia ser aproveitada até mesmo da forma contrária: algum "grande" faz dois anos horríveis e, no terceiro ano, melhora um pouco, mas ainda cai pelo promédio. De repente, a regra muda para que os rebaixados sejam os piores daquele campeonato – que não incluem o time em questão. Não é simples como jogar fora algo que não funciona, é necessário um plano para a readequação do futebol argentino. Da mesma forma, diminuir a quantidade de clubes que caem em meio a pressão dos "médios", só deixa mais claro o desnivelamento proposital. A AFA (Federação Argentina de Futebol) sabe que o regulamento é injusto, tanto que já aboliu o promédio nas divisões inferiores. Elas não tem, é claro, times com força política.
Criada e utilizada para beneficiar os "grandes", agora sendo modificada para proteger também os "médios"… A regra do promédio parece ser o atalho para que a organização do futebol argentino faça o que lhe convém. Hoje em dia, a Superliga, entidade que rege a Primeira Divisão, é afiliada mas oficialmente autônoma com relação à AFA, responsável pelas outras divisões. Quem sobe da Primera B, portanto, sai de um sistema sem promédios para um cotidiano em que lida com a regra diariamente. Isso sem falar no outro ponto da injustiça, estabelecido há muito tempo: um time que chega na Superliga após anos de Segunda Divisão parte zerado, enquanto outras equipes puderam "diluir" campanhas ruins. Como os pontos são divididos pela quantidade de jogos disputados nos últimos três anos de Primeira Divisão, a margem de erro dos novatos é mínima. Efetivamente, um ano ruim segue suficiente para alguns caírem – não todos.
O argumento de que é injusto punir um clube por "um ano ruim" não cola como contraponto à proteção dos times favoritos da organização. No futebol, como em qualquer esporte, um ano ruim é suficiente para ter consequências, como tirar uma seleção da Copa, da mesma forma que um ano bom leva um time à Libertadores, por exemplo.
Para se ter uma ideia, entre 1990/91 (quando foi estabelecido o sistema curto atual, de Clausura e Apertura) e 2009/10, apenas quatro equipes que subiram à Elite permaneceram no ano seguinte. Como muitas coisas, talvez o problema maior nem seja o sistema utilizado, mas a forma como ele é aplicado. A diminuição de times rebaixados, por exemplo, não é por si só negativa: o Campeonato Argentino é mesmo inchado já há algum tempo. Entre 2015 e 2017, a competição chegou a ter 30 participantes. A partir de 2023, a ideia é que voltem a ser 20 e o formato seja de turno e returno. Em longo prazo, a medida mais recente pode fazer muito bem ao campeonato. O promédio, entretanto, é a complicação, já que injustiças severas podem ser cometidas no meio do caminho. Ao contrário da mudança de calendário, que mereceu até o Torneio Transición, em 2014, a Superliga mudou as complexas regras do descenso sem qualquer transição.
Na última temporada, clubes como San Lorenzo e Estudiantes fizeram campanhas bastante ruins, especialmente o Ciclón. Os próprios Rosario Central e Newell’s, caso escapem da queda em 2020, já entram pressionados em 2021. Ao lado deles, o Lanús é outro que não pode se dar ao luxo de ir mal na Superliga que começou na sexta-feira passada (26). A decisão que mudou o rebaixamento, aliás, foi tomada dois dias antes, na quarta (24). E sim, os argentinos também olham o promédio a longo prazo. Clubes médios como Argentinos Juniors e Colón, dois dos piores do último torneio, estão pressionados desde já – a derrota inesperada do Colón, em casa, diante do Patronato, ligou o sinal de alerta logo na primeira rodada. Mas tudo é feito para que sigam na Elite. Dos 24 integrantes atuais, só o Aldosivi não esteve em todas as últimas três edições. Para Arsenal e Central Córdoba, recém-promovidos, a luta é ingrata. Mais ingrata do que deveria.
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