Sonhos de bola nos quadrinhos
Gidalti Jr. narra história de menino-urubu na Belém dos anos 1990, rodeado de futebol.

– Alôoou!! Vai rolar travinha! PRI!
– SI!
– Meu pau! Pri sou eu, cheiroso! Fui pegar a trave lá na casa do caralho.
– TRI! É apostando chulipa, é? Hein? Selou chulipa?
– Ehehehe!
Entre peladas e devaneios, a bola é parceira do Castanha, o menino-urubu protagonista do romance gráfico Castanha do Pará, livro de estreia do artista visual Gidalti Moura Jr. O personagem é um garoto magricela da periferia de Belém que sai de casa e vive pela rua, perambulando e fazendo pequenos furtos. O setor dele é para as bandas do Ver-o-Peso, tradicional complexo de feiras e mercados no centro comercial da cidade.
O enredo se passa em meados dos anos 1990, mas a Belém de violências e abandonos do Castanha poderia muito bem ser a de hoje. A capital do Pará é a mais violenta do país, segundo o Atlas da Violência de 2018. É a nona em homicídios de adolescentes, de acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência publicado em 2017. E nem adianta chamar o capitão Peixoto para acudir – no livro, é ele quem ouve, da vizinha, a história do Castanha.

Dentro de campo, aquela década foi de hegemonia do Remo sobre o Paysandu, no clássico com mais jogos disputados do Brasil. O Leão Azul conseguiu o famoso tabu de 33 partidas sem perder para o rival e comemorou uma sequência de cinco títulos do Campeonato Paraense. Pois o Castanha, vê só, não tira a camisa do Remo. O personagem do conto Adolescendo Solar, de Luizan Pinheiro, que inspira a narrativa gráfica de Gidalti Jr., já era remista.
O garoto que rivaliza com o Castanha na história, Vitinho, torce para o Paysandu. Ele é um menino-mucura. Toda a molecada, a turma que brinca de travinha, é de meninos-bichos. Tem menino-porco, menino-macaco, menino-gato. Isso aí não estava no conto. Foi definido por um estudo de design do personagem principal, feito por Gidalti Jr. com seus alunos. O recurso visual faz troça do que sobra à infância na cidade.
Tanto a construção do protagonista quanto a ambientação da HQ e a linguagem coloquial das falas têm traços das memórias do garoto Gidalti, que foi criado em Belém. Vale para o papel que a pelota ganha na história. "Eu via muito esse anseio da criança belenense de periferia, nessa época, que sonhava em ser jogador de futebol", lembra o autor de Castanha do Pará. "Eu uso o futebol aí como maneira de projetar os sonhos do menino."


Jogando bola, o Castanha pode ser Taffarel, Bebeto, Romário. Embotado pelo calor, pela fome e pela cola, pode fazer três gols no Papão da Curuzu e comemorar o título do Remo montado no Leão dentro do Mangueirão – desenhado já às feições do estádio olímpico que virou nos anos 2000. Durante a chuva da tarde, pode encarnar o beque azulino Belterra ou, já que imaginação não tem muro, o rei Pelé; e ter, do outro lado, o colombiano Higuita defendendo o chute e algum jogador argentino para revidar.
"O futebol tem uma presença muito forte no cotidiano. Tudo vira bola. De repente ele chuta uma garrafa, de repente a molecagem dele na rua é sobre futebol. O brasileiro de maneira geral tem isso, mas em Belém tem as suas particularidades", considera Gidalti Jr., referindo-se à paixão do torcedor por Remo e Paysandu, que supera o que os clubes dão de retorno em espetáculo, resultado e conforto.

No livro, o futebol que é escape para a violência, território de sonhos de moleque, acaba por retornar a ela. "O próprio desenrolar do personagem se dá entre um bate-boca de 'veste a camisa, não veste a camisa', 'tira a camisa desse clube, não tira'. Então, da mesma forma que é algo lúdico, é algo que pode ir pra tragédia de maneira muito rápida – somado ao álcool, à falta de educação, à falta de outras perspectivas na vida", conta o artista visual.
Castanha do Pará, depois que ganhou a rua, apanhou da PM. A ilustração de capa do livro, em que o protagonista foge de um policial no Ver-o-Peso, foi censurada e removida de exposição em um shopping de Belém. Membros da corporação se sentiram ofendidos. A violência nossa de cada dia, diante do espelho, causa desconforto. Melhor não vê-la. Como não se via o menino Castanha.

Gidalti Jr. não está envolvido por futebol como seu personagem. O olhar que lança ao esporte é mais satírico do que de quem se entretém pelo riscado das chuteiras. Por conta do Castanha, seu criador acabou por virar homem-bicho. Mas, ao contrário da criatura, foi graças ao reconhecimento, não à invisibilidade. O homem-jabuti venceu o mais tradicional prêmio literário brasileiro em 2017, na estreia da categoria Histórias em Quadrinhos.
Além de aulas ministradas no próprio estúdio, em São Paulo, e trabalhos como freelancer em projetos comerciais, Gidalti mantém boa parte de sua agenda dedicada a fazer quadrinhos. Ele já prepara o próximo livro: "Eu espero colocar esse novo livro na praça em breve, mas ainda tem bastante trabalho. O que eu posso te adiantar é que ele vai continuar no contexto da nossa cultura urbana amazônica".
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