Triste fim do futebol?
Escritor e cronista Lima Barreto chegou a criar uma Liga Contra o Football cem anos atrás.

Policarpo Quaresma ficaria orgulhoso de seu criador. Tais quais as trincheiras quixotescas do célebre personagem, o jornalista e escritor Lima Barreto comprou briga com uma ainda nascente paixão nacional, o futebol. As críticas apareciam nas crônicas que ele publicava em periódicos nas décadas de 1910 e 1920.
Em Sobre o Football, que saiu na revista Brás Cubas de agosto de 1918, Barreto se incomoda com o entusiasmo com que se falava do esporte nos jornais, com as expressões futebolísticas importadas (backs, kicks, corners), com a rivalidade criada entre estados por conta do jogo. Ele termina dando graças por serem restritos os que têm ânimos aflorados pelo futebol:
Se assim fosse, se as partidas de football entre vocês de lá [de São Paulo] e nós daqui [do Rio de Janeiro], apaixonassem tanto um lado como o outro, o que podia haver era uma guerra civil; mas, se vier, felizmente, será só nos jornais e, nos jornais, nas seções esportivas, que só são lidas pelos próprios jogadores de bola adeptos de outros divertimentos brutais, mas quase infantis e sem alcance, graças a Deus; dessa maneira, estamos livres de uma formidável guerra de secessão, por causa do football!

Além dos exageros, os escritos de Barreto tabelavam com a ironia. "Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao observador imparcial, não há nenhuma tão interessante como uma partida de football. É um espetáculo da maior delicadeza em que a alta e a baixa sociedade cariocas revelam a sua cultura e educação", diz em Uma partida de football, publicado em outubro de 1919 na revista Careta. A crônica termina alegando que não vale a pena se divertir com um passatempo que sempre acaba em "rolo e barulho".
Assim começa A vantagem do football, que circulou em edição da Careta de junho de 1920: "Não tenho dúvida alguma em trazer para as colunas desta revista a convicção em que estou, de que o jogo de football é um divertimento sadio, inócuo e por demais vantajoso para a boa saúde dos jogadores respectivos". No desenrolar do artigo, o escritor cita notícias de crianças e jovens que se acidentaram, passaram mal e até morreram jogando futebol.
A cruzada de Barreto contra o "jogo do pontapé" não ficou no papel. Em 1919, há cem anos, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, ao lado de outros intelectuais da época, criou uma Liga Contra o Football. No mesmo ano, o Brasil venceria seu primeiro título relevante. A liga provocou reações, como o texto Bombas e arrecifes - uma campanha perigosa? (ver imagem), publicado no Correio da Manhã de 14 de março daquele ano.

As referências zoológicas (coelhos), frutíferas (limas) e religiosas (santos) eram direcionadas, além de Lima Barreto, a Coelho Cavalcanti e Antonio Noronha dos Santos, coartífices da campanha contra o esporte. Participava também Mário de Lima Valverde, citado por Barreto em uma entrevista sobre a liga que saiu dia 13 de março no Rio-Jornal. Nessa entrevista, incorporada no livro Diário Íntimo, o escritor elenca os problemas que envolviam o futebol:
Saúde: "(...) os prejuízos de toda a ordem que o abuso imoderado dos sports, sobretudo o football, trazia à nossa economia vital". Política: "Concluí que, longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separava-as". Social: "Os grandes clubes daqui (...) são portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça etc., você não pode negar isto!". Economia: "Parece que a Liga e a tal Confederação estão inscritas no orçamento da despesa da República".
"Você, Barreto, é um visionário", talvez debochasse Marechal Floriano, como fez com Quaresma. A liga que propunha não durou, mas a implicância com o futebol estava longe de ser loucura. Ao menos as denúncias de elitismo, racismo e promiscuidade administrativa expunham entranhas do esporte que, aos que atentassem apenas ao traçado dos pés em campo, jamais seria possível enxergar.

Em artigo na revista A.B.C. de agosto de 1922, intitulado O nosso esporte, Barreto retoma as alfinetadas às subvenções e aos favores que governo, congresso e conselho municipal davam a ligas, clubes e futebolistas: "O que verifico é que toda a nossa população anda apaixonada pela eurritmia dos pontapés e os poderes públicos protegem generosamente as associações que a cultivam".
O racismo no futebol aparece em coluna na Careta de outubro de 1921. No texto, o escritor comenta a decisão de mandar o escrete nacional para o Campeonato Sul-Americano de Futebol, que seria disputado na Argentina, sem jogadores negros. Segundo Barreto, o responsável por tal acinte contra essa gente "ordinaria e comprometedora" era o próprio presidente da República Epitácio Pessoa:

A providencia conquanto perspicazmente eugenica e scientifica, traz no seu bojo offensa a uma fracção muito importante, quasi a metade, da população do Brazil; deve naturalmente causar desgosto, magua e revolta; mas – o que se ha de fazer? O papel do futeból, repito, é causar dissenções no seio da nossa vida nacional. É a sua alta funcção social.
O escritor, que era negro, completava provocando: "Matem logo os de côr; e viva o futeból, que tem dado tantos homens eminentes ao Brazil! Viva!". Lima Barreto não tardaria a partir. Futebol e racismo permaneceram. O primeiro, com suas ambiguidades, entre nacionalismos e decepções. O segundo, impregnado em nós, entre permanências e resistências – agora novamente com status presidencial.
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