Um minuto de silêncio
Filme de Fernanda Montenegro reverencia Ademir de Menezes, craque do Expresso da Vitória.

O vascaíno Tuninho, sentado nas arquibancadas do Maracanã, chora. Poderia ser um dos torcedores que viu, neste domingo (31), a Taça Rio escapar das mãos e pintar-se rubro-negra. Que sofreu com o gol de empate nos acréscimos e a derrota nos pênaltis. Mas Tuninho é de outro tempo. Seu choro põe fim à história de A Falecida, filme de Leon Hirszman adaptado da peça homônima do tricolor Nelson Rodrigues.

O casal Zulmira e Tuninho leva uma vida de frustração no subúrbio do Rio de Janeiro. Desempregado, ele passa o tempo no bilhar discutindo futebol. Ela enfrenta um problema pulmonar e, agora, anda encucada com o que lhe disse uma cartomante: cuidado com a mulher loura. Por conta da saúde debilitada, Zulmira acredita estar à beira da morte. Quer um enterro como nunca houve nas redondezas, de dar inveja em Glorinha, a prima e vizinha que acredita ser a dita cuja citada pela cartomante.
Quem faz Zulmira é Fernanda Montenegro, em seu primeiro papel no cinema. A atriz, que em 2019 completa 90 anos, foi premiada pela atuação em A Falecida. Tuninho é interpretado por Ivan Cândido. O filme é de 1965, ano seguinte ao golpe militar. Naquele mesmo ano, o diretor Leon Hirszman teve que se exilar no Chile por conta da ditadura instalada no país. Ainda no governo João Goulart, ele havia sido um dos fundadores do Centro Popular de Cultura (CPC).

A Falecida foi o primeiro longa-metragem de ficção assinado por Hirszman, que nos anos 1980 filmaria o premiado Eles Não Usam Black-tie, baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri. Fernanda Montenegro também atuou em Eles Não Usam Black-tie. Em A Falecida, Hirszman teve como corroteirista Eduardo Coutinho, que se tornaria depois um dos mestres do documentário no Brasil.
A adaptação de A Falecida para o cinema, segundo o professor e crítico Ismail Xavier, difere no tom da tragédia carioca com traços cômicos do teatro de Nelson Rodrigues. "No filme de Leon Hirszman, (...) a palavra de ordem é a sobriedade e tudo se condensa em lances mínimos, numa leitura da peça que se afasta, de um lado, dos excessos do melodrama e, de outro, das extroversões da comédia".

A Falecida é uma história de ressentimento, traição e busca por redenção post mortem. A vida sem posses do casal é representada, por exemplo, no atendimento precário de saúde que Zulmira recebe. O médico diz que o pulmão da personagem não tem nada. Pois Zulmira quer que ao menos sua morte venha com pompa. Ela passa na funerária e pede orçamento para o enterro mais caro, com caixão e cortejo de primeira.
Sentindo que está nas últimas, Zulmira pede a Tuninho que procure João Guimarães Pimentel – interpretado por Paulo Gracindo –, um rico empresário do ramo de lotações, que bancaria os custos do sepultamento. Na cena derradeira de Zulmira, ela aparece na cama, depois um catártico banho de chuva, quando Tuninho chega em casa preocupado.

– Que foi? – pergunta a mulher.
– Peso tremendo. Imagina tu que o Ademir machucou o tornozelo.
– Que Ademir?
– Ora, não aborreça você também! 'Que Ademir?' Tu nunca ouviste falar no Ademir? Parece que vive no mundo da lua.
(Zulmira tosse)
– Contundiu-se no treino. Estupidamente. Se ele não jogar... Ah, não sei não. Vai ser uma tragédia em 35 atos. Ademir sozinho vale meio time. Ah, vale! Sabe quem deu o supercampeonato ao Fluminense? Ademir! Decidiu todas as partidas sozinho. Uma vez, no Fla-Flu, comeu cinco, entrou com bola e tudo.
(Zulmira continua tossindo. Tuninho se encosta na cama, ao lado da mulher, pensativo)

– Às vezes eu tenho inveja de ti. Tu não te interessas por futebol. Não sabes quem é o Ademir. Não ficas de cabeça inchada. Quer dizer, não tem esses aborrecimentos. Tu não ligas pra nada. Benza-te Deus!
No início do filme, enquanto Zulmira volta para casa após consultar a cartomante, aparece um letreiro com os dizeres: "no tempo em que PELÉ era ADEMIR". Ademir de Menezes, o Queixada, foi um atacante matador. O maior goleador do Brasil em uma única Copa do Mundo; foram nove gols no Mundial de 1950. Se a seleção brasileira leva o caneco, Ademir seria um dos grandes nomes do título. Mas teve um Maracanazo no meio do caminho...

Pernambucano, Queixada começou e terminou a carreira no Sport Recife. Mas foi no Fluminense e no Vasco que ele arrebentou. No time de Tuninho, Ademir foi um dos expoentes do Expresso da Vitória, como ficou conhecido o escrete vascaíno que jogou de 1942 a 1952 e levou onze títulos. Queixada fez 301 gols pelo Gigante da Colina. Por isso a agonia de Tuninho com a possibilidade de Ademir não jogar.
Se Zulmira não sabe quem é Ademir, o marido não sabe de outras tantas coisas. Creio que você, leitor amigo, leitora amiga, também não saiba. Deixo que Pimentel lhe ponha a par dos acontecimentos. O filme está disponível na íntegra no YouTube. Antes da história rolar, um minuto de silêncio pela alma de Zulmira.
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