Um museu de histórias proibidas
Exposição vai lembrar o tempo em que a mulher brasileira foi impedida de jogar futebol.

Antes do futebol praticado por mulheres alcançar a visibilidade que terá este mês, com a transmissão da Copa do Mundo pela TV Globo, houve tempos de proibição e clandestinidade. Essa história, guardada na memória das futebolistas que por quase 40 anos tiveram que esconder sua predileção pelo esporte, vai ser contada em uma exposição digital colaborativa.
O Museu do Impedimento pretende coletar registros desse período silenciado, que vai do Estado Novo à Ditadura Militar. Imagens, documentos e relatos que ajudem a reescrever a súmula de um jogo que, até pouco tempo atrás, foi jogado de portões fechados. O projeto é idealizado pelo Google Arts & Culture, com curadoria do Museu do Futebol.
No Brasil que acompanhou Pelé começar e terminar a carreira, entre lances encantados e socos no ar, que viu tantos ídolos da modalidade masculina deixarem suas marcas nos gols adversários e nos corações dos torcedores, quantas mulheres habilidosas com a bola nos pés ficaram esquecidas ou sequer tiveram chance de desenvolver seu talento? Talvez alguma delas fosse genial como é Marta... Quem vai saber?

"Enquanto a gente estava lá vibrando com os três mundiais conquistados pela seleção masculina em 1958, 1962 e 1970, as mulheres estavam completamente alijadas dessa prática do esporte", conta Daniela Alfonsi, diretora de conteúdo do Museu do Futebol e uma das curadoras do Museu do Impedimento.
"Isso não era questionado por torcedores, por dirigentes, ou pelos próprios times e clubes masculinos", pontua Daniela. "Era apenas questionado por mulheres que sonhavam em jogar futebol de modo profissional, tanto quanto os homens, e não podiam por conta de um decreto criado em 1941."
Em 14 de abril de 1941, o então presidente Getúlio Vargas instituiu, por decreto-lei, o Conselho Nacional de Desportos (CND). O artigo 54 do decreto definia que "Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza", devendo o Conselho instruir as entidades esportivas.
A edição de outubro de 1941 da revista Educação Physica noticia que o general Newton Cavalcanti apresentou ao CND os tipos de esporte que as mulheres poderiam praticar, tendo, segundo o periódico, aprovação unânime dos demais conselheiros. O texto termina tratando dos esportes coletivos:

A interdição oficial da prática do futebol à mulher foi reiterada por deliberação de 2 de agosto de 1965, assinada pelo general Eloy de Menezes: "Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rúgbi, halterofilismo e beisebol".
O futebol feminino ficou proibido até 1979. Em 1983, o Conselho reconheceu e regulamentou o esporte, segundo a historiadora Giovana Capucim e Silva na pesquisa Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista.
Só que uma legislação como a de 1941 acaba atravessando a cultura. "Esse decreto teve consequências no nosso comportamento, no modo como a gente olha o futebol, sempre do ponto de vista masculino, como se fosse algo natural ao corpo do homem e impróprio ao corpo da mulher", explica Daniela Alfonsi.
"Esse é o argumento que dá base para a proibição nos anos 1940: que o futebol era impróprio ao corpo feminino, que poderia trazer consequências à saúde da mulher, como por exemplo a infertilidade – o que não tinha embasamento científico algum", diz a curadora do Museu do Impedimento. Além de enveredar para o campo da saúde, o futebol feminino por vezes também era caso de polícia.

A mineira Léa Campos, considerada a primeira árbitra profissional do mundo, foi presa 15 vezes durante o período em que a prática do futebol por mulheres não era permitida no Brasil. Um acidente de ônibus fez com que ela encerrasse a carreira como juíza de futebol. Prestes a completar 75 anos, Léa compõe o time de mulheres que, ao contar a própria experiência à exposição, escreve uma página dessa história coletiva.
A alcunha de país do futebol foi construída como referência a um país de jogadores homens. Mas este também é o país de mulheres que, mesmo quando proibidas, jogavam bola. Vale a torcida pelo escrete feminino do presente no Mundial da França, que começa no próximo dia 7. Vale também a luta pelo direito de narrar o passado sem impedimento.
Os registros para compor o acervo do projeto podem ser compartilhados pelo site até 24 de junho. Após a campanha, o material coletado vai parar em uma exposição virtual na plataforma Google Arts & Culture, além de entrar para o acervo do Museu do Futebol.
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